Crônicas - Felipe Gabrich

Mulher desvirginada

 
(*) Felipe Gabrich
O saudoso jornalista Júlio César de Melo Franco, um dos mais geniais editorialistas que Montes Claros conheceu na segunda metade do século passado, comentava com o também inesquecível  e consagrado advogado Sidney Chaves que olhando detidamente o contorno da famosa Serra dos Montes Claros, a que carinhosamente o povo chama de Serra do Mel, na parte oeste da cidade, podia-se enxergar o corpo deitado de uma mulher.
Isso, num mês qualquer de mil novecentos e borrachinha, no século XX, em frente à redação do jornal, na Rua Doutor Santos, fundado por ele juntamente com Décio Gonçalves.
Um dono e secretário de jornal, em vez de estar fazendo observações acerca de assuntos mais profundos – como a própria situação econômica do país à época – detinha sua conversa com seu amigo causídico numa observação lírica e romântica das aparências de um morro que circunda a cidade.
Em sua análise, Júlio Melo frisava que o contorno físico da Serra do Mel assemelhava-se a uma silhueta de uma mulher dormindo em berço esplêndido no chão brasileiro.
E detalhava: “os morros Dois Irmãos nada mais são do que os seios de uma mulher. Ao que tudo indica, em algum período da História da Terra, essa mulher teria sido petrificada por mãos divinas em cima de uma montanha, talvez numa demonstração de poder do Criador de todas as coisas aos aborígenes da época”, devaneava o jornalista.
A curiosa indagação que se faz na atualidade sobre o místico assunto  é a seguinte: nos tempos em que vivemos, já no século XXI, algum jornalista ou um simples homem do povo se daria ao luxo de questionar o aspecto físico da Serra do Mel?
De comparar o monumento da natureza a um corpo de mulher?
Um olhar para o que é hoje a encantadora montanha, inclusive os Morros Dois Irmãos, tombado pelo Patrimônio Público, poderia servir de resposta: as pedreiras e a indústria imobiliária estão deteriorando o que seria a única reserva florestal que ainda resta ao município.
Acresce-se ao fato deplorável que as chamadas autoridades competentes não fazem nada a respeito, nem mesmo o todo poderoso Ministério Público, que recentemente determinou à Prefeitura a não liberação de prédios no local.
As medidas judiciais anunciadas, a nosso ver, não resolvem a questão da lamentável situação atual da Serra do Mel, que requer ações mais rigorosas, como a demolição de estruturas de espigões, o cerceamento da invasão de torres de uma empresa estatal, a proibição da exploração de pedras.
Por falar em pedreira na Serra do Mel, se não estamos enganados deveria ter sido implantada no espaço uma Área de Preservação Ambiental, com a rigorosa atuação  de combate à construção clandestina de moradias em seu território, dentre outras  medidas preservacionistas.
Ou seja: está faltando peito e força de vontade aos dirigentes da Prefeitura, do Ministério Público e das entidades oficiais ou não oficiais de preservação do Meio Ambiente: a Serra do Mel tem sido agredida há anos e a ação delituosa e depredatória tem que ser cortada pela raiz, ou seja, é preciso deter o que está previsto para acontecer e desativar todas as irregularidades que já foram cometidas contra a conservação do único e rico manancial florestal do município.
Um simples mirar na parte Oeste da cidade é suficiente para essa constatação: os olhos dos homens não vêem mais a imagem da encantadora serra, com seus olhos se esbarrando em estruturas de edifícios que vêm sendo construídos às suas portas ou em pedreira comendo a terra com vegetação.
Esse crime, lamentavelmente, vem sendo praticado há anos, sob o olhar complacente da administração pública, a quem caberia criar leis que impedissem a depredação da maravilhosa criação da natureza, na qual estão incluídos os famosos Morros Dois Irmãos, esses sim, já tombados ao Patrimônio Histórico, mas que são apenas integrantes da fabulosa cadeia rochosa.
Ou da Câmara Municipal, onde os eficientes vereadores andam ocupadíssimos com a cessão de títulos de cidadania e o asfaltamento de ruas dos bairros da cidade. Mas se esquecem das riquezas naturais do município que vêm sendo agredidas em surdina. E  queira Deus que algum bravo parlamentar municipal não esteja envolvido em tramóias imobiliárias e em outras ações criminosas contra a integridade da Serra do Mel.
Ou, ainda, do Ministério Público, que tem poderes para agir com força de lei para impedir que o rico patrimônio público seja depredado.
Se estivesse hoje entre nós, com certeza o brilhante jornalista Júlio César de Melo Franco não poderia vislumbrar mais ao Oeste desses claros montes a mulher de pedra encantada de seus sonhos juvenis.
É sempre bom lembrar o que aconteceu ao Morro do Frade, quando, nos anos setenta do século passado, as autoridades do município fizeram vistas grossas à implantação do primeiro barracão no local.
E deu no que deu.
(*) Jornalista
 
 
 

 

Contradições da igualdade

Governo cancela e bloqueia 1,1 milhão de benefícios do Bolsa Família”
 “Planalto gasta mais de R$ 600 mil para organizar evento com artistas”

(*) Felipe Gabrich
Por mais incrível que possa parecer - as duas informações foram dadas com a maior naturalidade - estão entre os destaques desta segunda-feira, 07, no jornal eletrônico do Globo.
Perceba o leitor desavisado a gravidade do noticiário: na primeira notícia, a Globo informa que o governo cancela e bloqueia 1,1 milhão de benefícios do programa Bolsa Família. Trocando em miúdos: um milhão e cem mil famílias tiveram o benefício cancelado pelo Ministério de Desenvolvimento Social.
O órgão alega que os cortes foram feitos em razão de irregularidades detectadas, sendo que os atingidos poderão recorrer ao próprio organismo. Mas não disse se os beneficiários foram previamente avisados, não obstante contarem com o recebimento dessa ajuda financeira do governo no fim do mês.
Na segunda matéria, o jornal eletrônico informa que o mesmo governo federal gasta 600 mil reais para realizar um evento oficial fechado, no qual o presidente da República usurpador Michel Temer faz a entrega da “Ordem do Mérito Cultural 2016”.
Aí vem a indagação do leitor curioso: - uai, o governo cancela 1,1 milhão de benefícios do Bolsa Família, que ajuda os pobres a sobreviver, exultando o caráter de economia do dinheiro público com a medida. Mas, na noite desta mesma segunda-feira, faz uma festa de 600 mil reais para um grupo de artistas da classe média alta.
O que seria mais importante para a contenção do dinheiro público?, pergunta intrigado aos seus botões o leitor curioso: cortar o leite de milhões de pobres que dependem dos parcos recursos do programa Bolsa Família para não morrerem de fome, ou realizar uma noitada regada a uísque escocês para uma meia dúzia de artistas ricos?
Essas inexplicáveis contradições – e não convicções – levam o espírito do saudoso e romântico limpador de quintais – o filósofo popular Manoel Quatrocentos - a balbuciar cadavérico de seu túmulo: é, está mesmo complicado sobreviver nesta República do Engana-me que eu Gosto.

(*) Jornalista